Cultuado, aclamado e fonte de inspiração de diversas obras da ficção científica, Ghost in the Shell ganhou sua adaptação live-action em março de 2017 (leia a nossa crítica aqui). Somada às polêmicas sobre o whitewashing, o filme baseado no anime/mangá homônimo faturou pouco menos de US$ 170 milhões mundialmente (para um orçamento de US$ 110 milhões) e gerando um prejuízo US$ 60 à US$ 100 milhões de ao estúdio.

A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell teve uma recepção morna do público  e da crítica especializada, o que refletiu direto nos números da bilheteria. Apesar das polêmicas que rodearam a produção e de alguns movimentos em prol do boicote da obra, A Vigilante do Amanhã conseguiu dar vivacidade para a história de Masamune Shirow – desde a ambientação estética da metrópole cyberpunk até as resoluções filosóficas do live-action. Uma adaptação como esta, que respeita às suas origens e não deturpa a própria história para atingir um número maior de pessoas é uma raridade em meio as adaptações que Hollywood produz da cultura japonesa.

Ao contrário disso, a versão americana de Death Note, que está entre os mangás e animes mais importantes dos últimos 20 anos, chegou à Netflix no dia 25 de agosto (leia a crítica aqui) e amargurou uma recepção péssima da crítica e do público, com raras exceções.

A versão americana pega emprestado de Tsugumi Ohba, escritor do mangá, a ideia de um estudante que encontra um caderno que lhe dá o poder de matar quem ele quiser. Com essa premissa, o live-action norte-americano transforma a aclamada história em um filme, quase, de super-herói, mostrando que as adaptações de quadrinhos de Marvel e DC Comics não podem servir de base para tornar animes e mangás realidade no cinema ocidental.

Mas a questão principal sobre Death Note é que, talvez, não se trate de uma adaptação propriamente dita, mas sim de uma releitura cheia de licenças poéticas, que além de remodelar a história (adicionando os tradicionais elementos colegiais estadunidenses) acaba ainda perdendo o principal poder da obra original e das aclamadas discussões que ela levanta. Assim, o live-action abre mão de ter fidelidade a obra original, usando parte da sua premissa para criar, quase, uma nova história com o intuito de torná-la popular e menos segmentada.

Nat Wolff na adaptação de Death Note para a Netflix

O conceito de adaptação envolve também a modificação da obra original, e quem possui tais direitos tem o poder de alterar aquilo que bem entender. É controverso, no entanto, a Netflix ter uma ampla liberdade criativa ao desenvolver o seu conteúdo original – que vai de 3% (série brasileira) até a adorada Sense8 que transborda liberdade – e não adaptar o mangá com atores visualmente mais próximos dos personagens originais. Assim, a adaptação de Death Note torna-se questionável ao mesmo tempo em que deixa clara a intenção de levar a história para o grande público ao trazer rostos conhecidos como o de Nat Wolff (Cidades de Papel), Willem Dafoe, Margaret Qualley (The Leftovers) e Shea Whigham (Kong: A Ilha da Caveira), por exemplo.

É claro que muito do descontentamento dos fãs é por querer ver os seus personagens ganharem forma na vida real, mas mais próximos daqueles vistos no mangá e no anime – o mesmo que Marvel e DC Comics fazem, por exemplo, com Capitão América (Chris Evans), Homem de Ferro (Robert Downey Jr.), Thor (Chris Hemsworth), Batman (Ben Affleck), Mulher-Maravilha (Gal Gadot), entre outros personagens famosos que ganham vida em atores que se parecem com os heróis vistos nas páginas dos quadrinhos. Por isso, os fãs ocidentais da cultura japonesa não sentem a mesma emoção quando pensam se Light Yagami será fiel ao do anime na versão americana.

O problema é pertinente há anos, refletindo a insegurança de Hollywood em fazer uma adaptação da cultura pop japonesa fiel a obra original. O fato ainda agrega uma insistente má fama ao mercado cinematográfico, que deixa margem para debates sobre preconceito, whitewashing e apropriação cultural de forma negativa para a indústria, quando em pleno 2017 deveriam ser temas do passado.

Prova disso é a recente notícia sobre o reboot de Hellboy, em que Ed Skrein (escalado para viver o Major Ben Daimio no filme) informou que estava deixando o elenco do longa (saiba mais). A justificativa comprova que existe uma “inteligência coletiva” que está ciente da falta de representatividade de personagens de origem ocidental em Hollywood. A decisão do ator partiu de muita reflexão, de sua parte, após descobrir que o personagem era de origem asiática.

“…representar culturalmente esse personagem precisa trazer algum significado para as pessoas, e negligenciar essa responsabilidade continuaria uma tendência preocupante para as histórias e vozes das minorias étnicas nas artes… É nossa responsabilidade tomar decisões morais em tempos difíceis e dar voz à inclusão. Espero que um dia essas discussões se tornem menos necessárias e que possamos ajudar a tornar a representatividade nas artes uma realidade.”, disse Ed Skrein na sua publicação no Instagram.

Ed Skrein em cena de Deadpool

A atitude do ator é ímpar e positivamente inesperada, afinal seria normal ver um personagem asiático de menor expressão dentro de um filme ser interpretado por um ator de outra etnia. Ao contrário disso, o Death Note da Netflix faz o oposto, troca a etnia dos principais personagens da história por uma decisão mercadológica de levar o filme para o grande público.

O problema disso é que o mundo não gira em torno do ocidente, e se a intenção é de realmente popularizar uma das obras mais importantes e inteligentes da história da cultura pop japonesa, então por que não adaptá-la com fidelidade, trazendo um elenco multi étnico que represente de fato a obra original? Além disso, por que não manter os diálogos necessários sobre moral e ética levantados no mangá e no anime, com todos os seus dilemas existenciais e filosóficos?

O ano é 2017, e Hollywood parece não perceber que a representatividade das minorias é mais importante do que ocidentalizar obras de valor universal.