Imagem: IMDb
Kimi No Na Wa pode ser visto como uma representação da cultura do “Agora=Aqui”. Entenda!
Matéria com SPOILERS de Kimi No Na Wa!

O tempo e espaço na cultura japonesa são vistos de uma maneira diferente do que na cultura ocidental, representando o que eles denominam como a cultura do “Agora=Aqui”, e por meio deste conceito da cultura japonês podemos notar como Kimi No Na Wa, anime de Makoto Shinkai que entrou no começo de dezembro no catálogo da Netflix, é uma bela representação do mesmo. O “Agora” representa o tempo como uma linha reta que segue em uma única direção, e nessa linha existem diversas partes – únicas – que configuram o “Agora” e por fim, o tempo. O “Aqui” representa o espaço, que assim como o tempo, também é composto por diversas partes que compõe um todo, sendo este “todo” a concepção do espaço na cultura japonesa.

Essa tendência da cultura japonesa de “partes comporem o todo” pode ser explicada pelo conceito japonês de Kigo, ou em tradução livre, palavra que se relaciona a uma temporada, ou seja, as estações do ano. Na cultura japonesa as estações passam e no próximo ano se repetem, porém distintas entre si, ou seja, cada estação tem um significado único a cada ano, e na ciclicidade das estações, o outono de 2017 foi único, assim como o outono de 2016 ou o outono de 2018 ainda será. Cada outono irá compor uma parte, que no final irão em conjunto formar um todo.

No significado abstrato da cultura do “Agora=Aqui”, o ambiente físico possui um impacto profundo na vida dos japoneses, desencadeando fugas da realidade opressiva em que vivem e que podem ser melhores observadas. Tais fugas se dão pelo fato da rigidez da sociedade japonesa, onde se espera muito de seus integrantes e a disciplina é um fator chave nessa cultura. Na literatura histórica do Japão, vemos essas fugas sendo representadas pelas peregrinações aos santuários existentes no país, como o Santuário de Ise. Essas peregrinações são vistas como uma breve fuga temporária da dura realidade do cotidiano, atuando como uma espécie de alívio de pressão. Fugas no tempo também são retratadas na literatura japonesa, neste caso, com um tom mais fantástico, retratando viagens para outros mundos onde o tempo se passa de forma diferente da realidade.

Todos esses aspectos culturais do “Agora=Aqui” revelam uma nova forma de ver o tempo e o espaço, um jeito bastante diferente do que o mundo ocidental está acostumado. O encontro de todos esses aspectos pode ser visto em outra atividade cultural japonesa, uma que sobreviveu até os dias atuais, o Teatro Nô. Tal atividade cultural japonesa tem como objetivo contar uma história, porém nesta forma de teatro japonês a história é vivida como um drama atual, o drama de quem assiste. Ou seja, o Teatro Nô tenta fazer com que o espectador sinta o que os seus personagens estão sentindo e que de alguma forma você se identifique com eles. O palco do Teatro Nô geralmente é quase vazio, contendo sempre somente um pinheiro que tem como função ser a personificação do tempo, e quando um som agudo é emitido, os espectadores são “transportados” para dentro da história a ser contada, vivenciando essa história no presente e por isso “a história é vivida como um drama atual, o drama de quem assiste”.

Uma representação atual do Teatro Nô inserido dentro do mundo de entretenimento japonês pode ser encontrada no segundo maior filme, em questão de bilheteria, japonês do ano e sucesso de crítica, Kimi No Na Wa (ou em inglês, Your Name). A trama do filme gira entorno de dois adolescentes; Taki, um garoto que vive na conturbada Tóquio e Mitsuha, uma garota que vive na pequena e bela aldeia de Itomori. Ambos se sentem pressionados em sua atual realidade, tendo que lidar com pressões dos estudos e de sua vida particular. Porém, como se as preocupações do dia-a-dia não fossem o suficiente, eles se veem trocando de corpos quando acordam pela manhã. Eles não têm certeza, porém essa troca de corpos parece estar relacionada com a passagem de um cometa que retorna a cada 1.200 anos.

Cena do filme Kimi No Na Wa

O Tempo é o elemento principal por trás do filme e também no Teatro Nô e na cultura japonesa, como se pode observar. No filme, a definição de tempo é descrita como a arte de fazer “fios trançados”, que são “a própria personificação do fluxo do tempo. Eles vão se juntando e ganhando forma. Eles se torcem e embaraçam. Às vezes retornam, impedindo, então que se ligam novamente. Isso é o Tempo”. Esse monólogo dito pela avó de Mitsuha descreve bem como a noção de tempo é vista na cultura japonesa. Algo que não é linear, podendo retornar, impedindo, para então se ligar novamente. Quando a personagem também diz que os fios, no processo de fazer fios trançados, “vão se juntando e ganhando forma” podemos observar a questão da parte que compõe o todo, ou seja, o conjunto de fios irá compor algo maior. Tal qual o Tempo é visto na cultura japonesa.

O tempo cíclico, que é chamado de Kigo na cultura japonesa, pode ser observado no longa por meio do cometa. Assim como as estações do ano sempre se repetem, porém de maneiras distintas a cada vez, a passagem do cometa pelo planeta Terra também cria este mesmo tipo de influência na vida dos personagens. Ao final do filme descobrimos que a cidade onde Mitsuha vive, Itomori, foi criada pelo impacto de um pedaço de um cometa que caiu no local – o mesmo cometa que habita o céu de Mitsuha e Taki. As trocas de corpo ao final do filme são interpretadas, pelos personagens, como uma tentativa de impedir que o mesmo acontecesse novamente, ou seja, a ciclicidade da rota do cometa estava sendo alterada pelas trocas de corpo entre Taki e Mitsuha, tornando único o momento em que o cometa passava pelo planeta Terra, e único o momento na vida dos personagens também, já que ambos estavam trabalhando juntos e trocando de corpo para impedir a queda do cometa em Itomori.

A influência do Espaço na narrativa da animação pode ser vista como um dos motivos que levaram os dois jovens a trocarem de corpos. Durante o início do filme e o seu segundo ato, é mostrado muito da vida de ambos e todos os problemas com os quais tinham que se preocupar. Levando ao ponto de observarmos, em uma cena, Mitsuha gritando aos quatro ventos “Eu odeio esta cidade! Eu odeio esta vida! Por favor, me dê um cara bonito de Tóquio na próxima vida!”. Claramente o ambiente opressor das comunidades, o espaço físico, se faz presente na vida de ambos e esta cena de Mitsuha, assim como a troca de corpos, pode ser interpretada como um desejo de fuga, um ponto de escape. Outra cena que pode ser citada é quando Katsuhiko, amigo de Mitsuha, esta sentado na janela observando de longe o templo onde Mitsuha vive, e profere as seguintes palavras: “É… nós temos uma vida difícil, não é mesmo?”. Podemos observar em um trecho do livro Tempo e Espaço na Cultura Japonesa esse sentimento de fuga na população do país:

“A expressão explosiva dessa insatisfação latente foram as visitas em grupo ao Santuário de Ise, chamadas de okagemairi (peregrinação para obtenção de graças) ou nukemairi (peregrinação para fuga do trabalho), que se repetiram em todas as regiões do país no período Tokugawa.[…] A motivação varia segundo época e lugar. Porém, por trás dessas repetidas histerias coletivas, não podemos deixar de supor que houvesse um desejo reprimido de se libertar da ordem e da pressão da vida diária.” (Kato, 2011, p. 254)

Todos estes aspectos acerca do Tempo e do Espaço, presentes no filme, irão fazer do anime, como um todo, uma peça de Teatro Nô, já que é nele que podemos observar a junção da cultura do “Agora=Aqui”. Os fatores que possibilitam interpretar o filme como uma peça do Teatro Nô são a presença de um objeto que representa o tempo cíclico e um som agudo que atue como meio para transportar o espectador para dentro da história que está sendo contada.

Cena de Kimi No Na Wa

No filme, o cometa representará o tempo cíclico na história – como já dito. Temos noção do tempo no filme com base na passagem do cometa pela Terra, sendo toda a narrativa desenvolvida enquanto o cometa está em sua passagem pela Terra e visível no céu de Itomori. A presença do cometa não é em nenhum momento escondida pelo filme, e ao contrário disso, vemos diversas vezes o mesmo sendo citado pelos personagens e diversas cenas onde observamos um enfoque direto nele, deixando claro sua importância na trama.

O som agudo desempenha no filme a mesma função observada no Teatro Nô. Ele tem o objetivo de transportar o espectador para diferentes linhas cronológicas dentro da história que está sendo contada. Desde seu início, o filme faz com que o púbico pense que está acompanhando a vida de Taki e Mitsuha de forma simultânea, deduzindo que ambos estão vivendo na mesma linha do tempo. Porém pode-se observar que isto não é verdade quando, no ápice do festival de Itomori, Mitsuha está caminhando para observar o cometa e percebe que partes dele estão indo em direção do solo. É então que se escuta, pela primeira vez no filme, um som agudo que representa uma virada na trama. Então, o espectador é transportado para dentro da verdadeira história, da verdadeira realidade. A realidade de Taki. Assim conhecemos a história que irá ser contada, vivenciando-a no presente, como se fizesse parte dela naquele momento.

Fica evidente o papel desempenhado pelo som agudo que transporta o espectador para dentro da história, vivendo-a como se fosse o presente e marcando presença em toda reviravolta na trama. No filme esse recurso é utilizado para explicar a cronologia da narrativa e também para salvar Mitsuha e os habitantes de Itomori de serem mortos pela queda de partes do cometa.

Kimi No Na Wa, a obra cinematográfica, como um todo, pode ser interpretada com base na cultura japonesa do “Agora=Aqui”, seja por meio da visão do Tempo, no Espaço ou do Teatro Nô. A obra ainda ressalta o aspecto cultural japonês da parte compor o todo, sendo o filme composto por diversas partes que possuem um significado próprio e momento único, para depois todas elas se juntarem e formarem um significado maior. Serão os aspectos do Teatro Nô que irão compor esta visão, revelando as diferentes cronologias presentes no filme, para então juntá-las e dar um propósito final narrativo para a jornada dos personagens, que seria evitar a queda do cometa em Itomori e salvar seus habitantes de um destino trágico.