As imagens que aparecem na tela do cinema são capturadas por uma câmera e sua lente a partir de uma combinação de olhares. Há quem opere a câmera, tem também a direção de fotografia e ainda a direção (é possível que hajam mais pessoas de diferentes funções cujos olhos possam influenciar na imagem final, mas isso varia de um filme para outro). No fim, quem exerce a função de dirigir terá a palavra final sobre o que foi filmado – isso sem considerar o processo de montagem e edição.
Só quem estava presente durante as gravações de CIDADE; CAMPO pode afirmar como foi a dinâmica do longa-metragem de Juliana Rojas. E só quem assistir o filme nos cinemas terá a chance de entender a beleza do olhar sensível da diretora traduzido em imagens.
CIDADE; CAMPO, o novo longa-metragem de direção solo de Juliana Rojas, traz duas histórias que se entrelaçam em temas do cotidiano. O filme mostra a reconstrução da vida de Joana (Fernanda Vianna), uma trabalhadora rural que morava em uma cidade varrida pelo rompimento de uma barragem. Além disso, também apresenta Flávia (Mirella Façanha) e Mara (Bruna Linzmeyer), um casal que sai de uma metrópole para viver no interior após o falecimento do pai de uma delas.
Pouco antes do seu lançamento, CIDADE; CAMPO recebeu dois prêmios no Festival de Cinema de Gramado. Fernanda Vianna, interprete de Joana, ganhou o Kikito de Melhor Atriz e o Júri da Crítica premiou a obra como “Melhor Filme de Longa-Metragem Brasileiro”. Além disso, depois da estreia mundial no Festival de Berlim, a diretora venceu o Urso de Ouro no Berlinale Encounters.
O destaque fora do país e o recente reconhecimento em solo gaúcho, dão credenciais importantes para o longa-metragem. Ou seja, há algo interessante no cinema que Juliana Rojas entrega em CIDADE; CAMPO.
A partir das histórias centralizadas em mulheres que dominam suas narrativas, o filme desenvolve sua trama consciente de que essa construção não deve ser convencional. O uso do ponto e vírgula no título é um indicativo do que o público irá encontrar nas telas dos cinemas.
Embora pareça um filme sobre o cotidiano e assuntos relacionados as ações mais ordinárias da vida, CIDADE; CAMPO deixa implícito que tem um pé fora da realidade. Isso porque é característico da filmografia de Juliana Rojas o uso de elementos do cinema fantástico para atribuir significado em suas histórias. Assim como o papel lúdico da representação musical.
Essa identidade cinematográfica construída pela diretora está presente no seu novo exemplar. A comunhão do drama com o gênero fantástico e o lúdico do musical são também a personalidade desta história. Além do estilo não convencional da apresentação da trama, o encontro desta interdisciplinaridade estética e narrativa faz com que CIDADE; CAMPO não seja um filme comum.
Embora a opção de não embaralhar os enredos fuja do óbvio, o destaque do longa-metragem está no olhar natural e sensível do que é retratado. Não se trata apenas de ângulo, enquadramento, direção de arte e as cores das cenas, mas sim de uma percepção traduzida em imagens que constrói subjetivamente a beleza deste filme.
A partir desta construção, CIDADE; CAMPO consegue desenvolver estas histórias não apenas narrativamente, mas principalmente as camadas que envolvem o que é contado pelo filme. Com isso, a obra mostra em tela não apenas as conexões temáticas das duas cronologias, mas uma conversa afinada entre as personagens, os ambientes ocupados por elas e as suas bagagens emocionais.
Embora apresente problemas técnicos pontuais, oriundos das dificuldades enfrentadas pela produção durante a pandemia de Covid-19, o resultado final é um filme com alma. CIDADE; CAMPO ainda mostra a importância do estilo autoral ao contar uma história. O filme utiliza o cinema de gênero para desenvolver seus pensamentos e criar diálogos sensíveis com a audiência.
Toda essa orquestra funciona, também e principalmente, por causa do desempenho do elenco. Fernanda Vianna e Mirella Façanha dão vida as protagonistas, Joana e Flávia, e potencializam o que vivem as personagens. No apoio, todos os personagens secundários auxiliam o espectador a entender o contexto que essas figuras centrais estão inseridas.
Além disso, os personagens que orbitam as protagonistas exercem um papel fundamental na construção do olhar da diretora. Jaime (Kalleb Oliveira), com a inocência de uma criança, vê na tecnologia uma possibilidade para a retomada de Joana, sem questionar a capacidade da tia que veio do interior. Celino (Marcos de Andrade), o caseiro da fazenda, sequer revela estranhamento ou descontentamento com a presença de Flávia e Mara (Bruna Linzmeyer).
Assim como o elenco, as escolhas visuais, sobretudo na fotografia, também são peça fundamental da construção atmosférica do longa-metragem e fortalecem o vínculo da história com o fantástico. Alinhado a isso, o som cria a ambiência necessária para que a experiência sensorial da obra torne-se intrigante e arrebatadora.
Gravado durante o período da pandemia de Covid-19, CIDADE; CAMPO resiste aos desafios enfrentados pela produção. É um filme que pulsa forte como um coração e exibe uma beleza que conquista pelo subjetivo, rompendo padrões ao entregar um estilo de cinema autoral que só histórias brasileiras podem proporcionar.