Em 2019, o diretor Todd Phillips levou aos cinemas um filme acontecimento. Aquele Coringa é o tipo de longa-metragem que não acontece toda semana. O sucesso de crítica, público, bilheteria e prêmios foram consequências naturais. E pela lógica comercial, seria óbvio esperar por uma sequência – a confirmação aconteceu em 2022, com o anuncio através do perfil de Phillips no Instagram, com direito a foto do roteiro e de Joaquin Phoenix.
A partir disso, a questão problema era óbvia: como continuar uma história que não carecia de continuidade? Com isso, Scott Silver e Todd Phillips, que assinam o roteiro de Coringa: Delírio a Dois, resolveram que Arthur Fleck estaria no presídio estadual Arkham vivendo as vésperas do julgamento dos crimes que cometeu no metrô de Gotham, no seu apartamento e ao vivo TV.
De fato, o melhor de Coringa: Delírio a Dois está no primeiro ato, que reintroduz o personagem e apresenta seu novo cenário, conseguindo dar continuidade ao filme de 2019. O tratamento chocante recebido por Arthur Fleck, por exemplo, emula a construção da possibilidade de empatia – algo tão bem orquestrado no primeiro longa-metragem.
Além disso, é logo no começo que Todd Phillips introduz o grande chamariz do filme: a Harleen Quinzel de Lady Gaga. A conexão entre ela e Arthur Fleck é instantânea, como um imã atraído por um metal.
Lee é uma fã do Coringa e de tudo que ele fez no primeiro filme. É como as histórias de serial killers e suas admiradoras. Quando os dois se conhecem, passam a viver uma fantasia de amor e boa parte do filme se resume a isso. É neste momento que o musical, prometido pelo diretor, entra em ação.
Com músicas originais e reinterpretações, Coringa: Delírio a Dois, por boa parte da sua duração, apresenta bons números musicais e consegue atribuir sentido para o uso deste recurso, dando para as canções significados que somam narrativamente a obra.
Mais do que nunca a vaidade e o egocentrismo de Arthur Fleck se evidenciam em tela. O personagem que outrora sentia-se invisível, novamente tinha um palco para dar o seu show, ser visto e de alguma maneira reconhecido por outras pessoas. Lustrar o ego de Fleck é também enchê-lo de confiança – algo que a atuação de Joaquin Phoenix expõe, fisicamente, muito bem.
Por outro lado, o filme exibe um vislumbre das consequências dos atos de Arthur Fleck na sociedade. Gotham, mesmo depois de algum tempo, continua em crise e vivendo uma revolta popular das camadas mais pobres e marginalizadas da população. A figura do Coringa transcende entre essas pessoas, tornando-se uma espécie de messias ou mártir – como o próprio filme denomina.
Essa relação simbólica com o que o Coringa representa é o lado mais interessante da história. E é isso que a dupla de roteiristas escolhe ignorar.
Coringa: Delírio a Dois procura decifrar, entre devaneios e fantasias, se Arthur Fleck e Coringa são ou não a mesma pessoa. A tentativa de reinserir o personagem no contexto das doenças mentais e justifica-las a partir dos abusos sofridos pelo protagonista – tal qual a construção hegemônica de um serial killer – diverge com o próprio desenvolvimento dele no filme anterior. Afinal, o caminho que levou Arthur Fleck até o Coringa já havia sido determinado.
Além de fazer repetições narrativas e criativas do primeiro filme, Coringa: Delírio a Dois parece ter mais de um longa-metragem dentro do mesmo pacote. Há o romance com Harleen Quinzel, um thriller pesado que mostra as torturas vividas pelo protagonista no Arkham, o musical que transita entre essas histórias e um filme de tribunal cujo ápice do julgamento não acontece.
Os números musicais e o encontro das vozes de Lady Gaga e Joaquin Phoenix funcionam na maioria das vezes. Nessas cenas, a direção de arte e os figurinos se sobressaem. São estes, inclusive, os únicos aspectos nos quais o filme não fica por menos em relação ao antecessor.
No entanto, apesar de alguns bons números musicais, a trilha sonora original – vencedora do Oscar em 2020 – ficou ofuscada em Coringa: Delírio a Dois. Se no primeiro filme ela tinha um papel essencial para o impacto daquela história, no novo longa-metragem faz apenas figuração.
Outro elemento subutilizado pelo longa-metragem é Harleen Quinzel. A presença de Lady Gaga como Arlequina é certamente um mistério para o público – e um dos motivos que levará a audiência aos cinemas para conferir o filme. No entanto, o roteiro opta por deixá-la na sombra de Arthur Fleck. Embora a personagem seja importante para movimentar a história, seu desenvolvimento é raso. E quando isso acontece, Harleen sequer está na cena.
Algo semelhante acontece com Joaquin Phoenix. Embora Arthur Fleck seja o protagonista e grande foco da história, o ator não entrega a mesma magia do primeiro longa-metragem. Fisicamente, o empenho em trazer o corpo esquelético está ali. Porém, sua atuação oscila – é evidente o que ele faz enquanto Arthur Fleck e Coringa, mas há um terceiro e um quarto elemento que não concatenam com estes dois ou com o conflito vivido pelo protagonista.
Entre todas as tentativas de entregar algo concreto ao espectador, Coringa: Delírio a Dois ainda encontra espaço para ensaiar uma crítica, ou pelo menos reflexão, sobre a Sociedade do Espetáculo ou a espetacularização dos crimes e serial killers na imprensa.
No longa, a história se passa cerca de três anos após o que é contado no filme de 2019. Neste período, um documentário sobre os crimes de Fleck foi produzido para a televisão, assim como há uma procura incessante da imprensa para entrevistar o protagonista.
Em dado momento, Arthur Fleck atende um desses pedidos sendo entrevistado para um programa de televisão. Enquanto Paddy (Steve Coogan) tenta pressionar o protagonista a falar dos seus crimes, Fleck rebate criticando o sensacionalismo e o fato de ninguém querer ouvir o que ele tem a dizer.
Coringa: Delírio a Dois não consegue superar seu antecessor em nenhum aspecto. Talvez nem tente ou sequer tenha esta pretensão. Como continuação, então, não demonstra capacidade de manter a qualidade da obra de 2019 – em especial na direção e no roteiro.
O diretor Todd Phillips já disse que não fará um terceiro filme. Talvez por isso dedique parte do ato final para eliminar a possibilidade deste retorno. Apesar disso, deixa uma janela aberta caso alguém queira continuar esta história de alguma forma.
O final, sem dúvida, reserva uma surpresa. Diferente de 2019, Coringa: Delírio a Dois apresenta uma história que mira e atira em vários lugares, mas não acerta em nenhum dos alvos. Não há um grande momento, não há catarse, não há potência e muito menos impacto. Existem cenas plasticamente bonitas, mas de pouco significado.
Na sombra de um filme singular que o antecede, Coringa: Delírio a Dois falha como continuação – seja da história ou na qualidade da forma de contá-la. Cinco anos depois, Todd Phillips entrega um filme destinado ao esquecimento.