Desde a chegada da pandemia no início de 2020 no Brasil, os cinemas passaram a maior parte do tempo de portas fechadas, algo inédito na sua história. Sem o seu habitat natural, os filmes precisaram migrar diretamente para as plataformas digitais. E o público acostumado com a atmosfera criada com o apagar das luzes, o silêncio e um ambiente confortável, precisou encontrar no próprio lar um lugar para assistir aos longas-metragens desejados.
As grandes atrações que geravam expectativas no espectador foram adiadas, algumas delas (como Viúva Negra do Marvel Studios e Duna da Warner Bros.) já teriam estreado, mas com a pandemia esses filmes ainda não puderam ser assistidos. “Todo mundo perdeu, os filmes que foram lançados perderam, a gente como espectador perdeu porque não temos a mesma qualidade de imersão no filme”, lamentou Rodrigo Salem.
Há mais de oito anos atuando como correspondente da Folha de S. Paulo em Los Angeles, nos Estados Unidos, Salem teve o hábito de ver filmes alterado. Em casa, encontrou a dificuldade de se concentrar nas histórias que assiste. “Me distraio facilmente, preciso de um cinema para isso”, contou. Mesmo com uma televisão grande e controlando os ruídos do ambiente, ele admitiu que a experiência não é a mesma.
Rodrigo Salem também é crítico de cinema e tinha em sua rotina o costume de ir em cabines de imprensa (uma sessão fechada para convidados que escrevem sobre os filmes antes da estreia). Membro da Associação de Críticos de Hollywood, do Critics’ Choice e da Motion Picture of America, o jornalista acredita que o cinema vai mudar: “Não acho que o cinema vai acabar, só acho que ele vai ficar diferente”.
A opinião vai além. Com as novas dinâmicas de lançamento de filmes que se acentuaram durante a pandemia, ele acredita que o cinema será algo para “colecionador”. As pessoas vão continuar acompanhando grandes filmes como Vingadores: Ultimato (2019) ou os novos capítulos da saga Star Wars. Mas de modo geral, o local (cinema) precisará de algo a mais. “O cinema vai virar um grande disco de vinil”, afirmou Rodrigo Salem.
A comparação com o vinil se dá pela experiência com o produto. O jornalista explicou que adquire os discos pelo pacote completo: “eu compro porque tem a capa maior, a prensagem dá uma qualidade maior para ouvir, é mais bonito, o encarte é grande e vem autografado pelo artista”. Para ele, todos esses ingredientes que enriquecem o objeto, deverão ser inseridos no cinema.
A visão de Salem é uma expectativa a médio prazo, em um cenário onde a pandemia esteja controlada no mundo todo. Embora acredite na mudança, o jornalista destacou que, em um primeiro momento, o público comparecerá em peso ao cinema. Depois de tanto tempo em casa, as pessoas vão querer ir para rua. E as salas de exibição serão um dos lugares mais visitados.
Cinema e experiência
Cinéfilo de carteirinha, Thomás Boeira não põe os pés nos cinemas desde março de 2020. Entre as saudades de frequentar o espaço estão o cheiro de pipoca e a preparação antes do filme começar.
Os elementos que fazem parte da experiência de ir ao cinema, segundo ele, fazem falta. “Sinto falta da experiência completa de chegar no cinema e ter o cheiro da pipoca, de entrar na sala cuidando para não tropeçar nas escadas, das luzes se apagando, da tela e do som de qualidade”, revelou. Assim como Salem, o cinéfilo afirmou que mesmo tendo uma televisão grande e uma boa aparelhagem de som, “nada supera, realmente, a experiência de uma sala de cinema”.
Esses atributos, que vão da qualidade da projeção até o conforto da poltrona e o ambiente climatizado, são atrativos importantes das salas de cinema. A professora de Administração e Marketing do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) Priscila Esteves acredita nisso. Para ela, o espaço físico é um fator essencial para que o público continue assistindo os filmes na telona. “A gente vai para um lugar especial e consegue entrar mais no filme”, afirmou.
Mesmo com as tecnologias dando a opção de assistir filmes quando, onde e como quiser, os frequentadores do cinema ainda preferem a tela grande, a qualidade de som e imagem e o ambiente de uma sala de exibição. “Dificilmente a pessoa tem uma boa estrutura em casa para assistir áudio e vídeo”, disse Priscila Esteves. Independentemente do tipo de filme, seja um drama ou comédia, a praticidade de vê-lo em casa nem sempre vai garantir uma experiência satisfatória com a obra cinematográfica.
Cinema em casa
Assistir um filme no cinema é também dedicar o seu tempo para este momento. É sentar-se em uma poltrona e pelas próximas duas horas se entregar para uma história. Em casa, a situação é outra. Thomás Boeira, por exemplo, trabalha com edição de vídeo e a rotina profissional somada a convivência do lar, por vezes, o impedem de assistir alguma obra audiovisual.
O cinéfilo revelou que em outros tempos assistia “três ou quatro filmes em um dia”, mas atualmente “tem sido difícil se concentrar para assistir qualquer coisa”. Segundo Thomás, em casa, há muitos detalhes que roubam a atenção. “O telefone que toca, parar o filme para ir ao banheiro, trabalho em casa, eu nunca estou inteiramente livre pra assistir algo tranquilamente”, contou.
Ao longo de 2020 e dos primeiros meses de 2021, os cinemas puderam reabrir (de acordo com a situação de cada localidade em relação a pandemia). Thomás, no entanto, afirmou que não estava à vontade de sair de casa para ver um novo filme na tela grande. “Não sinto que tenha segurança e controle suficiente da pandemia para ir em um ambiente fechado com pessoas que não conheço”, afirmou.
Mesmo com essa possibilidade, a continuidade da reabertura era incerta. Os números de contaminação e morte ainda são fatores cruciais para os cinemas poderem ou não funcionar. Com a situação, as distribuidoras precisaram criar alternativas para lançar seus filmes.
Adaptação digital
Com a maioria das salas fechadas, os estúdios e distribuidoras precisaram apostar em novos meios para o lançamento de filmes. De antemão, a Walt Disney Pictures já tinha a sua própria plataforma, o Disney+. Nela, a empresa decidiu que os novos títulos seriam disponibilizados para os assinantes através do Premier Access. Enquanto o longa-metragem chegava aos cinemas que estavam abertos, o streaming oferecia a obra por valor adicional.
O modelo estreou em março de 2021 no Brasil, com a animação Raya e o Último Dragão. Entre os dias 5 e 19 de março, os usuários do Disney+ precisavam pagar R$69,90 para assistir ao filme em casa. Quem não tivesse pressa para conferir a atração podia esperar até 23 de abril, quando o desenho entrou no catálogo da plataforma para todos os assinantes.
A estratégia seguirá nos próximos meses. Viúva Negra, filme que trará Scarlett Johansson de volta ao papel da personagem-título será lançado em 9 de julho nos cinemas e no Disney+, com o Premier Access. Analisando o formato, Rodrigo Salem ressaltou que a Disney não divulga os resultados dessas estreias, mas acredita que a ação tem dado certo. “Eles não revelam números, para saber se esses lançamentos foram bem-sucedidos, mas acho que sim porque eles estão fazendo novamente”, afirmou.
Quem não tem a própria plataforma de streaming precisa encontrar outras maneiras de levar seus lançamentos ao público. Foi o caso da Vitrine Filmes com Druk — Mais Uma Rodada (leia a crítica do filme aqui). O longa-metragem representou a Dinamarca no Oscar 2021 e venceu o prêmio de Melhor Filme Internacional. A premiação ocorreu no dia 25 de abril, uma data atípica, pois a cerimônia costumava acontecer em fevereiro. Mas neste ano precisou ser adiada por conta da pandemia.
Com o cenário provocado pela Covid-19, a distribuidora optou por lançar a obra dirigida por Thomas Vinterberg nos cinemas que estavam abertos e em plataformas de compra e aluguel de filmes, o VOD (Video OnDemand). Economicamente, ter filmes com indicações ao Oscar é uma boa oportunidade de levar mais pessoas às salas de exibição em tempos normais. “O Oscar é um fator que a gente precisa aproveitar, o que a gente está tendo de retorno nas plataformas (digitais) por causa das indicações é muito bacana”, revelou Felipe Lopes diretor da Vitrine Filmes.
Embora a resposta do lançamento online de Druk tenha sido positiva, o serviço de compra e aluguel de filmes é como uma versão digital das locadoras, mas menos lucrativo. “O aluguel individual não tem o mesmo peso que tinha antigamente, a gente tinha mais receita com o vídeo físico do que temos com o aluguel digital”, disse o diretor da distribuidora.
Felipe Lopes observou que os espectadores assinam o streaming, mas não costumam aderir muito a compra ou aluguel individual dos títulos. Nem as plataformas de VOD e nem a Agência Nacional do Cinema (ANCINE) divulgam números sobre os rendimentos desse formato.
A exemplo deste hábito, Thomás Boeira é assinante de dois serviços de srteaming (Netflix e Amazon Prime Video) e revelou que nunca alugou ou comprou filmes nas plataformas de VOD. Os serviços de assinatura mensal são o local onde ele mais assiste longas-metragens, junto com os DVDs e blu-rays. “Tenho também a minha coleção de filmes em mídia física, que eu trato com muito amor e carinho”, contou Thomás.
Mudança inevitável
O desafio imposto pela pandemia fez com que as distribuidoras se preocupassem mais com o digital. Antes o filme tinha sua janela no cinema (tempo em que durava a exibição nas salas) e depois ia para as plataformas online. Agora é preciso fazer tudo ao mesmo tempo. Para Rodrigo Salem, essa dinâmica pode mudar o cinema. “A pandemia foi um catalisador, adiantou em cinco ou dez anos o que era inevitável, acelerou e não vai ter volta”, afirmou.
Para Salem a mudança não significa o fim. “Não é o fim do cinema”, destacou o crítico da Folha de S. Paulo. Para as produtoras e distribuidoras, a bilheteria do cinema ainda é um fator importante. “O dinheiro ainda existe lá, e ninguém vai jogar esse dinheiro fora, é muita grana”, disse o jornalista. As transformações que o cinema sofrerá virão com o tempo, e ele vai modelar como a sétima arte vai ficar.
Esperança em atrações inéditas
Ricardo Difini é diretor de operações do GNC Cinemas e admitiu que a reabertura animou o mercado exibidor. “Quando lançamos Mulher-Maravilha 1984, entre dezembro e janeiro, melhorou bastante a situação dos cinemas, mas depois chegou a nova onda e nós tivemos problemas”, contou.
O diretor do GNC Cinemas afirmou que “a situação é indescritível”. “Isso nunca aconteceu, os cinemas estão praticamente há um ano sem funcionar”, destacou. Sem saber como a pandemia seguirá nos próximos meses, Ricardo Difini mantém a esperança em dias melhores. A aposta é nos filmes inéditos e aguardados pelo público. “Acredito que o que nós realmente precisamos é de produto novo, com esses filmes a gente vai conseguir retomar a normalidade dos cinemas”, afirmou.
Godzilla vs Kong, filme que traz o embate entre as duas famosas criaturas, é o começo da esperança. Nos Estados Unidos, o streaming da WarnerMedia, o HBO Max, disponibilizou o longa de graça para os assinantes. Mesmo assim, o blockbuster (filme de grande orçamento) arrecadou US$99 milhões no País até o dia 10 de junho, segundo o Box Office Mojo.
No Brasil, entre 6 e 9 de maio, Godzilla vs. Kong arrecadou R$1,9 milhão nas bilheterias de acordo com o ComScore. O resultado é fruto da reabertura do comércio em algumas cidades. Para Ricardo Difini, o sucesso reafirma a relevância do cinema: “O lançamento do Godzilla vs Kong nos EUA mostra isso, ele foi lançado nos cinemas e no HBO Max, e o sucesso nos cinemas foi muito grande”.
A pandemia mudou provisoriamente a relação dos espectadores com os filmes. Modificou ainda o modo como as produtoras e distribuidoras trabalham com as exibidoras e as plataformas de VOD ou streaming. Essas transformações precisarão de tempo para se modelarem. Quando os cinemas voltarem em definitivo, o público poderá desfrutar ainda mais do seu novo poder de escolha.
*Reportagem desenvolvida como trabalho da disciplina de Práticas em Jornalismo: Produção de Jornal do curso de jornalismo do Centro Universitário Ritter dos Reis – UniRitter. Texto publicado originalmente na revista digital do jornal UniPautas no Medium. O trabalho foi supervisionado pelo professor Cid Martins.