A expectativa que envolve o lançamento de Ainda Estou Aqui é um fenômeno que pouco acontece com o cinema brasileiro – ou pelo menos nem sempre nesta proporção. O novo filme de Walter Salles acumula o chamado hype não apenas por causa do próprio diretor ou por nomes como Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro no elenco. Isso se deve principalmente a carreira que o filme está construindo em festivais, com reconhecimento da crítica internacional e sendo apontado como possível postulante a nomeações na temporada de prêmios.

Chegando aos cinemas brasileiros depois de passar por diversos festivais, Ainda Estou Aqui tem como maior feito até o momento à conquista do prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza. Há discussões sobre o filme conseguir, ou não, uma ou mais nomeações ao próximo Oscar. Assim como o velho debate sobre o cinema brasileiro precisar ou não da estatueta dourada de Hollywood.

Essas discussões cinéfilas e comerciais são apenas a camada superficial sobre o debate. O importante sobre o novo filme de Walter Salles, baseado em livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, é a própria história.

Em entrevistas, Salles comentou sobre a convivência que teve com a família Paiva entre o final dos anos 1960 e a década de 1970. Com isso, além de uma adaptação da obra literária, Ainda Estou Aqui ganha traços de uma narrativa de memórias do diretor, do autor do livro e também da história recente do Brasil.

Ainda Estou Aqui é a história de uma família, do que aconteceu com ela e principalmente de uma mulher que não esmoreceu diante dos momentos mais difíceis da sua vida.

Cena com parte do elenco do filme "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles.
Cena com parte do elenco do filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles. | Crédito: Divulgação/Sony Pictures.

Os primeiros minutos de Ainda Estou Aqui colocam o espectador no Rio de Janeiro da década de 1970. Praia, vôlei, Coca-Cola para ajudar no bronzeado e amigos em seus pontos de encontro. São cenas fraternais e saudosistas que rapidamente levam o público a outro pedaço importante dessa reconstrução histórica: enquanto a vida acontecia em sua aparente normalidade, a Ditadura Militar seguia em curso no país.

Além de recriar a ambientação da época e traçar contornos políticos e sociais do período, o longa-metragem conta, nestes trechos iniciais, com a presença do Rubens Paiva (Selton Mello). Porém, a estada dele na história causa sensações estranhas. É como se o personagem ao mesmo tempo em que está em cena seja visto e sentido como algo efêmero ou onipresente.

Essa mistura de sensações é um ponto de extrema relevância nesta história. Isso porque Eunice Paiva (Fernanda Torres) também foi presa pelos militares, mas ao contrário do marido ela voltou para casa.

No entanto, a questão é que parte da tortura imposta a Eunice Paiva era a incerteza sobre o luto. O sumiço sem explicação, a esperança do retorno e a dúvida sobre a sobrevivência de Rubens também eram sinônimos de uma dor que ninguém ao seu redor era capaz de afagar. Além disso, eram também um dos métodos de tortura psicológica dos militares.

Ainda Estou Aqui demonstra muito bem isso, assim como dá vida a momentos que somente parte da família Paiva tinha em sua memória – em específico do dia em que Rubens foi levado embora.

Selton Mello como Rubens Paiva (esquerda) e Fernanda Torres como Eunice Paiva (direita) em imagem do filme 'Ainda Estou Aqui', de Walter Salles.
Selton Mello como Rubens Paiva (esquerda) e Fernanda Torres como Eunice Paiva (direita) em imagem do filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles. | Crédito: Divulgação/Sony Pictures.

Existe, além da história e seu contexto, uma clara intimidade do diretor com a narrativa. A câmera que observa os personagens demonstra afeição por essas figuras e pelo ambiente da casa. Essa percepção vai ao encontro do que Salles disse em entrevista a Folha de S. Paulo: “A casa de Rubens e Eunice no Leblon era generosa, acolhedora, um ponto de encontro de muitas tribos […]. Ali aprendi a amar Caetano e Gil, toda a Tropicália, e a ouvir altas discussões políticas“.

A partir disso, a memória de Marcelo Rubens Paiva, contida no seu livro, e a afetividade das lembranças do diretor se misturam na hora de contar essa história. Sendo, então, uma narrativa de memórias, Ainda Estou Aqui não busca construir um clímax e nem apresentar um plot twist. Ao contrário disso, o filme permanece tênue e contido.

No entanto, ao contraste disso existe uma potência inerente a ausência e a dor. É como se o filme fosse um copo de água que fica a beira de transbordar ao mesmo tempo em que nenhuma gota d’água sai do recipiente.

Muito disso está presente na atuação de Fernanda Torres. A atriz, conhecida pelas comédias, tem o talento do drama no sangue. Sua personagem é difícil, pois na história Eunice vive um turbilhão e guarda toda essa tempestade dentro de si.

Os filhos apreensivos com o sumiço do pai, e com o desaparecimento temporário da mãe, a vida seguindo financeiramente enquanto aquele que provia a casa não volta, e, mesmo assim, Eunice continua de cabeça erguida, sem fraquejar, buscando controlar a situação e resolver os problemas.

Cena do filme 'Ainda Estou Aqui' que reproduz imagem registrada por fotógrafo da extinta Revista Manchete.
Cena do filme Ainda Estou Aqui que reproduz imagem registrada por fotógrafo da extinta Revista Manchete. | Crédito: Divulgação/Sony Pictures.

Em uma cena em que Eunice e os filhos se reúnem para tirar uma foto, ela faz questão de não seguir a orientação do editor da revista que queria um retrato sério. Mesmo assim, ela e os filhos entregam um largo sorriso para o fotógrafo.

Ao mesmo tempo em que Ainda Estou Aqui fala sobre dor e um tipo de luto difícil de lidar, ele também é sobre força e resiliência. E esta ideia está simbolicamente representada em Eunice Paiva.

A atuação de Fernanda Torres, por mais contida que seja sua personagem, é expressiva porque demonstra exatamente aquilo que Eunice tenta esconder. Esse tipo de desempenho é tão difícil quanto representar alguém que explode e coloca para fora toda a ferocidade de inúmeros sentimentos.

Essa mistura de contenção e manifestação compõe uma performance elegante entregue por Fernanda Torres. Das expressões faciais, aos silêncios e tempo de resposta até a fisicalidade da sua presença de cena. Ainda Estou Aqui é um dos grandes, se não o maior, trabalho da atriz.

Além de fisicamente muito semelhante a Rubens Paiva, Selton Mello parece encarnar o que era de fato esse importante personagem da história recente do Brasil. “Rubens era o elo afetivo entre esses diferentes grupos etários. Lembro seu riso largo, seu humor contagiante”, disse Salles na mesma entrevista para a Folha citada pouco antes no texto. De fato é isso que o diretor busca no retrato que constrói dele em seu filme.

Fernanda Montenegro como Eunice Paiva em cena do filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles
Fernanda Montenegro como Eunice Paiva em cena do filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles. | Crédito: Divulgação/Sony Pictures.

Não por menos, e sem uma linha de diálogo, Fernanda Montenegro existe no filme. “Existe” porque está ali, imóvel, representando Eunice Paiva nos estágios mais avançados do Alzheimer. Mesmo no mais simples e sutil, a maior atriz do Brasil é brilhante e exala a potência de um talento incomparável – herdado pela filha que protagoniza o longa-metragem.

Ainda Estou Aqui é o tipo de exemplar cinematográfico que transcende a barreira lógica de pensar o cinema. Ele pode ser visto pelo olhar técnico, que analisa a narrativa, as atuações e todos os elementos de produção de uma peça audiovisual. Por outro lado, o filme é capaz de fazer o espectador esquecer esses aspectos quando convida cada indivíduo a imergir em sua história.

Sem flertar com o melodrama, Ainda Estou Aqui é o grande filme do Brasil em 2024. É um longa sobre memória, sobre não esquecer o passado para viver o presente e o futuro, como disse o próprio diretor. É uma obra de muitas sutilezas nas atuações, diálogos e no uso e na ausência da trilha sonora. E são nessas nuances que a obra encontra sua potência.

Assista o trailer do filme Ainda Estou Aqui

Avaliação
Excelente
10
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Sou jornalista, fundador e editor da Matinê Cine&TV. Escrevo sobre cinema e séries desde 2014. No jornalismo tenho apreço pelo cultural e literário, além de estudar e trabalhar com podcasts. Além dos filmes e séries, também gosto de sociedade e direitos humanos.