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Oppenheiner, O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel e Forrest Gump: O Contador de História têm algo em comum com Emilia Pérez. Todos receberam 13 indicações ao Oscar. Há outros filmes que atingiram a mesma marca, como A Forma da Água. No entanto, os três primeiros, de alguma maneira, são filmes muito marcantes. Cada um pelos seus motivos e contextos, mas de certa forma todos com históricos positivos.

Com o tempo, do que lembrará o público ao pensar em Emilia Pérez? Embora seja o longa-metragem com o maior número de indicações no 97º Oscar, o filme é também o recordista de polêmicas na temporada de premiações. Uso de inteligência artificial, visão estereotipada do México e esvaziamento do retrato de uma figura transexual estão entre alguns dos rótulos, ou acusações, que a história recebeu.

É possível a análise separar a repercussão do noticiário do que é o filme? Seria isso um sinal da falta de personalidade no texto do crítico? E se a obra, na verdade, faz jus aos seus rótulos negativos? O filme é fruto não somente de uma ideia ou visão, mas também de um contexto. Fato é que Emilia Pérez resolveu navegar por águas perigosas, usando um barco furado enquanto achava que tudo estava bem.

Uma história de estereótipos

No filme, um dos grandes líderes de cartéis mexicanos, Manitas Del Monte, contrata uma advogada para executar uma missão sigilosa: encontrar um médico para realizar sua transição de gênero. O processo foi iniciado há dois anos, mas chegou a hora do criminoso assumir a verdadeira identidade. Com isso, Rita (Zoë Saldaña) precisa dar fim à vida de Manitas e criar a de Emilia Pérez (ambos vividos por Karla Sofía Gascón).

A história se passa essencialmente no México, mas aparece na Europa e outros países. Emilia Pérez é dirigido pelo francês Jacques Audiard, que também assina o roteiro com outros colaboradores e inspira-se livremente no livro “Écoute”, de Boris Razon.

filme Emilia Pérez
Zoë Saldaña (em foco) e Karla Sofía Gascón (sem foco) em cena do filme Emilia Pérez, de Jacques Audiard. | Imagem: Reprodução/TMDb.

A visão do diretor para o país da América Central é simplista. O México, que pouco aparece em larga escala, é retratado como um local de crimes e povoado por pessoas necessitadas. As cores, embora apresentem um tom azulado no contraste e nas sombras, conversam com os tradicionais tons quentes que costumam aparecer em filmes realizados fora do país, mas que falam sobre ele.

O perigo de reforçar um estereótipo é substanciar a construção de um imaginário que cria na sociedade uma representação monotemática daquele local. Logo, pensar no México pela ótica de Emilia Pérez é entender que lá é um local decadente e de alta criminalidade. Desta forma, reproduz-se um olhar micro sobre o país, seu povo e sua cultura.

A narrativa de transição de gênero resolve o dilema de uma vida em meia dúzia de diálogos. Manitas achava melhor ser um homem másculo e violento para sobreviver. Cansado de esconder quem realmente era, o criminoso queria viver a própria verdade. No entanto, o filme só valida a transição de gênero a partir da cirurgia. Ou seja, Manitas só seria mulher de verdade ao executar a operação, ignorando fatores emocionais, psicológicos e sociais que envolvem a transição de gênero.

Embora apresente sua legitimidade, o filme pouco explora com profundidade o conflito da personagem. Nas músicas, inclusive, usa frases ainda mais simplistas para falar da cirurgia de transição de gênero.

Em uma das cenas que tratam do tema, o médico canta sobre a operação mudar a aparência da pessoa, mas não a sua alma. Desta forma, mesmo que desejasse se tornar uma mulher, Manitas quando Emilia Pérez ainda seria Manitas. Sendo assim, o filme se auto invalida e canta o próprio desprezo.

O musical que esquece de si

filme Emilia Pérez
Karla Sofía Gascón em cena do filme Emilia Pérez, onde ela interpreta a personagem-título. | Imagem: Reprodução/TMDb.

Emilia Pérez tinha chances de acertar e ser um grande filme. A história inusitada em um cenário atípico eram fatores primordiais para isso acontecer. No entanto, de nada adiantam as boas ideias se a execução não utiliza o próprio potencial.

Em Emilia Pérez, como musical, as canções e melodias formam um desarranjo. As letras preocupam-se mais com sua repetição agressiva de ideias do que em conduzirem a narrativa. Com isso, o filme parece decidir cantar os diálogos que poderiam ser apenas falados pelos personagens.

O resultado são cenas desarmoniosas com letras que reforçam os problemas de ideia do longa-metragem – em especial aos que se referem à cultura local e à representatividade -, destacando ainda sua pobreza textual. As letras das músicas não encantam e os diálogos atingem níveis inqualificáveis.

No final, depois de tanto esforço, Emilia Pérez sequer lembra que é um musical de verdade. Embora estilisticamente siga os padrões das elipses do gênero, o filme ensaia novas canções, mas não dá sequência a elas enquanto se preocupa em transformar a figura central de sua história em mártir.

Emilia Pérez paga o preço da ambição

Embora a personagem Emilia Pérez carregue o título do filme, o diretor Jacques Audiard faz questão de não a marcar como protagonista da história. Na verdade, a centralidade da trama é divida com Rita Moro Castro. A advogada, interpretada por Zoë Saldaña, é a quem retém as camadas bem executadas pelo longa-metragem.

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Zoë Saldaña como Rita em cena do filme Emilia Pérez, de Jacques Audiard. | Imagem: Reprodução/TMDb.

Na profissão, embora não ostente a pompa de quem ganha grandes casos, Rita é responsável por salvar a pele de criminosos e abusadores. Porém, os créditos são recebidos pelo patrão, enquanto a advogada que vara a noite escrevendo textos de defesa fica apenas nas sombras do homem.

Há uma clara disposição do experiente Jacques Audiard de discutir a presença feminina, não à toa centraliza as duas personagens no filme, abrindo espaços esporádicos para Jessi, a viúva de Manitas vivida por Selena Gomez – a personagem é reduzida a mulher do narcotraficante que cai na noite com o antigo amante e tenta viver o romance dos sonhos.

A trama de Emilia Pérez não é de todo ruim. Na história, há pretensões interessantes com os rumos que ela tenta tomar. No entanto, transformar o enredo em musical mais atrapalha do que ajuda o filme.

Dentro disso, é nos minutos iniciais, quando a trama se apresenta e o foco está em Rita, que Emilia Pérez encontra os seus melhores momentos. A história da personagem é o que o filme apresenta de mais interessante, mesmo diante de uma discussão importante sobre transição de gênero.

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Selena Gomez como Jessi em cena do filme Emilia Pérez, de Jacques Audiard. | Imagem: Reprodução/TMDb.

Apesar das polêmicas e rótulos, Emilia Pérez não é desprezível. Há problemas de execução que dão à obra características desconjuntadas, como se drama e musical não conversassem em diversos momentos.

A visão simplificada de assuntos complexos e a refutação de maior investigação sobre a cultura mexicana – admitida publicamente pelo diretor – ficam evidentes em tela. Desta forma, empobrecendo a narrativa que paga pelas próprias ambições.

Independente da execução, Emilia Pérez não sofre por falta de coragem. A audácia do diretor em narrar a história é louvável. Porém, o filme paga um preço alto pelas próprias ambições. Mesmo com o roteiro de altos e baixos, Jacques Audiard consegue dar às suas atrizes – em especial à Karla Sofía Gascón e Zoë Saldaña – subsídios suficientes para que ambas tenham destaque em suas atuações.

Emilia Pérez não faça jus às 13 indicações que recebeu ao Oscar e é provável que não seja um marco no cinema como alguns dos seus colegas de números na premiação. O filme deve ficar marcado pelas controvérsias, ao invés de ser uma história memorável que discute um tema relevante responsável pela primeira indicação de uma atriz trans na história da premiação.

Assista ao trailer de Emilia Pérez

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Sou jornalista, fundador e editor da Matinê Cine&TV. Escrevo sobre cinema e séries desde 2014. No jornalismo tenho apreço pelo cultural e literário, além de estudar e trabalhar com podcasts. Além dos filmes e séries, também gosto de sociedade e direitos humanos.