Um grupo de homens está cantando a capella em um conhecido cenário de Paris. Maria Callas (Angelina Jolie) observa consciente de que ela, a grande La Calla, não precisa interpretar mais suas canções, já que há outras pessoas que podem fazer isso por ela. Na realidade, porém, não há música alguma sendo cantada. E uma das maiores interpretes de ópera da história caminha como se fosse anônima entre as pessoas.
A cena é um dos momentos melancólicos do drama Maria Callas, novo longa-metram do cineasta chileno Pablo Larraín. A trama narra os últimos dias da histórica cantora, conhecida também como A Divina. Ao longo do filme, o público verá também os esforços finais da artista para cantar uma última vez.
Longe dos palcos e dos dias de glória, La Calla vive uma rotina pacata e tediosa no apartamento onde mora. A companhia diária é do mordomo (Pierfrancesco Faviro) e da governanta (Alba Rohrwacher). Um faz a troca do piano de lugar quase todos os dias e a outra tenta elevar a autoestima de Maria Callas.
O que quebra essa rotina são as idas da cantora aposentada a um ensaio secreto, onde, com a ajuda de um músico, tenta interpretar suas canções novamente. Callas sempre foi dona de si, até o ponto em que aqueles que a prendiam, de alguma maneira, permitiam sua liberdade. Cansada disso, ela busca, pelo menos por uma vez, cantar para si.
A voz de Maria Callas não é mais a mesma na história e o corpo falha enquanto a artista tenta alcançar a potência que lhe ajudou a se tornar a grande La Calla. Diante do fracasso e na busca de adoração, ela vive um looping de melancolia e negação.
O drama pesado é sustentado por Angelina Jolie. Não há flerte com melodrama, Larraín foge deste estigma como ninguém. Por isso, o diretor confia o fardo da obra a Jolie, que carrega o filme com potência e elegância.
A agonia que consome Maria Callas por dentro é latente em tela. Os sentimentos da personagem, que vive no limite do seu emocional, estão todos a flor da pele. A qualquer momento, La Calla poderia explor.
Porém, a potência que sobra no drama não se repete no musical. Os méritos construídos por Angelina Jolie nas cenas melancólicas se esfarelam quando a atriz precisa interpretar as canções da lendária cantora.
A atriz até tenta, mas a força que faz suas veias do pescoço saltarem não é o suficiente para garantir a boa dublagem. Embora figure em algumas premiações e tenha o trabalho do filme rotulado como a atuação da sua carreira, é impossível ignorar a via de mão dupla que o desempenho de Angelina Jolie percorre durante o filme.
Durante parte da história, o público não vê Maria Callas cantando no presente (ou no período em que se passa o filme). As cenas são substituídas por algumas das suas apresentações mais icônicas, reinterpretadas por Jolie. A ideia é fazer com que a personagem recorra às glórias do passado para acreditar que pode repetir tais feitos depois de tanto tempo, além de misturar o real com a alucinação – peça-chave do filme.
Desta forma, Maria Callas revisita o próprio passado, como um filme que passa diante dos seus olhos ao longo dos seus últimos dias de vida. Enquanto a agonia interior consome a personagem, o ontem vira esperança na busca de um novo propósito.
Pablo Larraín é um exímio contador de histórias. Com Jackie (2016) e Spencer (2021), demonstrou a habilidade de desenvolver profundos estudos de personagens. Em Maria Callas, o cineasta chileno mostra novamente suas capacidades em um filme que, apesar dos deslizes, promove novamente um aprofundamento de uma figura icônica cujas dores tornam-se palpáveis a partir da atuação de uma grande atriz.
As falhas técnicas de Maria Callas são perceptíveis e podem comprometer parte do impacto das importantes cenas afetadas por elas. No entanto, as demais qualidades do longa-metragem pouco são abaladas por isso. O talento do diretor, somado ao roteiro, que humaniza com facilidade a personagem, e a atuação marcante de Angelina Jolie garantem uma homenagem intensa à memória de Maria Callas.