Estava nas hábeis mãos de Bryan Fuller a adaptação televisiva de American Gods (Deuses Americanos), cultuada obra de Neil Gaiman. Fuller traz o recente trabalho em Hannibal no currículo e a inacabada Pushing Daisies (ambos marcantes), e ele mostra logo no início que é o homem certo para trabalho.
Encontrando resoluções visuais que trazem uma forte identidade estética para o programa, os vícios da assinatura pesada de Fuller (mesmo que ele não dirija o episódio) mostram que o visual bebe na fonte de Hannibal. Assim, mesmo com um episódio ótimo, American Gods esbanja personalidade, mas a impressão que fica é que já nos conhecemos de outros carnavais.
A carga “Hannibalesca” que o criador traz para o programa é tanta, que a dinâmica entre seus novos protagonistas, Wednesday (Ian McShane) e Shadow Moon (Ricky Whittle), é bastante similar a de Will Graham e Hannibal Lecter. Mas, apesar de visivelmente beber na mesma fonte que a série, American Gods traz em seu mote cenas plasticamente impecáveis e marcantes, onde David Slade (que dirige o piloto e trabalha com Fuller desde Hannibal) transforma um banho de sangue em uma obra de arte, por exemplo.
Além dos atrativos visuais conquistadores remetendo a uma animação estilizada (lembrando até mesmo a sangria de Zack Snyder em 300), American Gods desenvolve uma linha narrativa tênue, e transforma a história curta do seu primeiro episódio (um cara que é liberado mais cedo da prisão por causa da morte da sua esposa, e no caminho para o funeral acaba conhecendo um homem intrigante, que lhe apresenta um novo mundo) em um enredo envolvente. “The Bone Orchard” (O Pomar dos Ossos em tradução livre) é um episódio eficiente no que se propõe: apresentar ao público uma fantasia interessante com muito a ser mostrado – parte deste mérito deve-se ao elenco, aqui, muito bem escalado.
Ricky Whittle como Shadow Moon poderia ser motivo de desconfiança, porém, em American Gods, Whittle atende as necessidades do protagonista e as nuances do personagem em ser um homem agressivo e viril, assim como representa alguém que carrega um fardo nos ombros. Ian McShane rouba a cena a cada frase que sai de sua boca – principalmente ao finalizar o acordo com Moon, onde ele cospe em sua mão e aperta a de Shadow para fechar o “contrato” de trabalho com o rapaz.
É interessante notar que narrativamente a série instiga o espectador a tentar reconhecer as figuras ali adaptadas (isso para quem não conhece a obra literária de Gaiman) trazendo de forma atualizada a personalidade dos Deuses da mitologia nórdica, recebendo o retrato de Gaiman (partindo da premissa: “e se os Deuses fossem Americanos?“) com uma roupagem contemporânea.
Ao estabelecer uma fantasia rica em detalhes históricos, narrativos e visuais, American Gods demonstra o potencial desse universo com pequenos momentos que questionam tudo o que ali é visto. Fuller e Slade impressionam com as oscilações entre o mudo real e o surreal inserido no meio de convívio humano, e tal contraste fica evidente, principalmente, quando Mad Sweeney, o Duende (Pablo Schreiber, que vive o Pornstache de Orange is the New Black) entra em cena e brinca com as possibilidades fantasiosas daquele mundo, acrescentando um humor sagaz e agressivo a história – e ainda satirizando o estereótipo visual dos duendes.
Vale ressaltar, que o mesmo acontece quando Bilquis (Yetide Badaki) se alimenta do prazer e desejo de um mero mortal, onde além de toda a simbologia conceitual da cena, o visual, mais uma vez, torna-se um show a parte. O mesmo se repete no pequeno momento em que Technical Boy (Bruce Langley) transforma pixels em mais um agouro estético, que culmina em uma cena brutal e insanamente doentia com vibrações de A Laranja Mecânica inspirando o balé violento e sangrento de Fuller no piloto.
American Gods, claramente, chega para ficar. Bryan Fuller e Michael Green (Logan) assinam o roteiro inteligente e cheio de informações conceituais e intrigantes para o futuro do programa na TV americana. O universo dos Deuses Americanos deixa uma clara mensagem informando que ainda têm muito que mostrar. Os méritos visuais caminham de mãos dadas à linha narrativa que se estabelece como alguém que já pertence a esse mundo há muito tempo. Com nuances que traçam rumos promissores, American Gods é uma fantasia completa ao transcender com liberdade entre o mundo real e o imaginário, entre a violência e o humor negro, sagaz e sem vergonha.
Eis uma das grandes estreias da TV americana em 2017.
Avaliação
[yasr_overall_rating size=”medium”] (Ótimo)