O Rio Grande do Sul vive a maior catástrofe de sua história. De acordo com a Defesa Civil, mais de dois milhões de gaúchos foram afetados pelas consequências das fortes chuvas no estado. Em um cenário de luta para salvar vidas e tristeza pelas perdas, surgiu um projeto que tenta amenizar a dor das famílias acolhidas em abrigos de Porto Alegre, o Cine Abrigo.
A iniciativa teve início a partir da troca de mensagens no grupo Olhar Para a Infância, que reúne voluntários para atender crianças vítimas das enchentes. “A mensagem de WhatsApp da Louise Kruger dizia ‘Que tal criarmos uma sessão de cinema?'”, contou Clara Iglesias, coordenadora do Cine Abrigo.
A partir desta pergunta, a estudante de psicologia de 23 anos decidiu iniciar o projeto que é um dos braços de atuação do Olhar Para Infância. O Cine Abrigo nasceu a partir da vontade de ajudar mais os abrigados e por isso funciona como “um mecanismo de fuga mental”, como explicou Clara Iglesias. Desta forma, o projeto utiliza a exibição de filmes como um momento de alento, onde crianças e adultos podem fugir da dura realidade que enfrentam desde o início das chuvas no final de abril.
O psicólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Christian Kristensen ressaltou a importância desta iniciativa em conversa com a Matinê. “A gente vê que as pessoas ficam muito ociosas, e as equipes acertadamente têm que criar estratégias de atividades para que as pessoas possam também ter uma passagem do tempo, para que não fiquem apenas remoendo e discutindo tudo que aconteceu”, afirmou Kristensen, que também é pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trauma e Estresse (NEPTE).
O cinema, entre tantos significados, funciona também como uma válvula de escape da realidade. Em uma sessão, o público de um filme pode conter cinéfilos, fãs de artistas e até mesmo pessoas que procuram por um lugar seguro para passar um tempo longe dos problemas. É neste sentido que o Cine Abrigo atua ao proporcionar para os desabrigados um momento de distração.
Cada longa-metragem, dentro de suas particularidades de temas e gêneros, tem por característica o uso de recursos visuais, narrativos e sonoros para provocar sentimentos nos espectadores. Desta forma, filmes podem fazer o público chorar, sentir medo ou se divertir. Com isso, podem proporcionar “uma distração ativa”, como ressaltou Christian Kristensen.
Para o publicitário Lucas Rewel, que é um dos apoiadores do projeto, “o Cine Abrigo é como um abraço especial nas crianças que ocupam uma parte dos locais que acolhem famílias desabrigadas”. O programa enxerga na atividade um combustível importante para enfrentar os momentos mais difíceis da trágica realidade vivida pelo estado. “Esperamos que elas saiam dos lugares de acolhimento com memórias mais leves e felizes”, afirmou Rewel.
Segundo o pesquisador da PUCRS, esta atividade é ainda mais importante para as crianças, principalmente com a previsão de chuva para o Rio Grande do Sul. “Para as crianças há um caráter mais importante […] para evitar esses gatilhos externos que muitas vezes reativam a memória em relação à situação traumática. Filmes, entre outras coisas, podem ser uma estratégia interessante de ocupar, distrair e entreter as crianças”, explicou o psicólogo.
Assim como na pandemia de Covid-19, os filmes, séries e qualquer tipo de entretenimento desempenham um importante papel em momentos de crise. Para a coordenadora do projeto, o vínculo da atividade com a cultura faz parte do Cine Abrigo. “Cultura dá força para viver”, ressaltou Clara Iglesias. Força, alias, é algo que estas e tantas outras famílias vão precisar para reconstruir o que perderam na nova catástrofe que atinge o Rio Grande do Sul.
Em busca de apoio
Para fazer a exibição de filmes nos locais de acolhimento da capital gaúcha, o Cine Abrigo usa recursos dos próprios voluntários. Notebooks, telas improvisadas, projetores, cabos de imagem e transporte são alguns do itens movimentados pelo grupo. Segundo a coordenadora do projeto, existe a necessidade de organizar o recebimento de doações, sejam de recursos financeiros ou de materiais que possam ajudar na exibição dos filmes.
“O apoio financeiro é importante para que possamos contratar profissionais desabrigados, como pipoqueiros que perderam seus trabalhos com o alagamento”, explicou Clara Iglesias. Desta forma, o projeto também conseguiria atuar ajudando a recuperar parte da vida profissional de desabrigados. “Queremos organizar a logística de doação, pois é algo que temos que ter cuidado”, ressaltou a coordenadora.
“A ajuda com o transporte de materiais entre os locais também é um ponto importante, pois muitos voluntários não conseguem se deslocar até os espaços”, destacou Clara Iglesias sobre outra necessidade do projeto. Além das exibições em Porto Alegre, há a intenção de expandir a área de atuação. Desta forma, o Cine Abrigo poderá amenizar, mesmo que por um momento, a dor que se espalha por todo o Rio Grande do Sul.