Dizer que o tema de Arkangel, o segundo episódio da quarta temporada de Black Mirror, fala sobre invasão de privacidade não seria a melhor definição. A verdade é que o tema do episódio dirigido por Jodie Foster condiz muito com uma privação de humanidade, e as discussões que Arkangel levanta vão muito mais longe do que imaginamos.
Aparentemente tudo se resumiria a uma das grandes obsessões de Black Mirror ao abordar mais vez a forma como a tecnologia influencia a vida humana. No entanto, mesmo trazendo esse conceito firmemente, Arkangel vai além ao mostrar como o interesse humano pode ser ainda mais decisivo do que a própria influência da tecnologia em meio a sociedade. Como de costume, o episódio flerta com uma distopia particular, inserindo uma tecnologia muito mais avançada em um mundo bastante comum.
Esse avanço chega ao ponto da criação de um programa de vigilância dos pais em cima dos filhos, com algo sendo injetado na cabeça das crianças, que acaba dando a liberdade dos pais verem através dos olhos dos filhos e ainda censurarem o que as crianças podem ver. Logo de cara, tudo isso soa estranho e viola claramente o direito universal de privacidade, mas, no entanto, como já citado, esse conceito vai além. Durante a infância acontece o primeiro contato da mente com o conhecimento hereditário e o cognitivo, é através dos pais que aprendemos a falar, e é através da vivência que aprendemos mais sobre a vida.
No momento em que algo nos proíbe de ver sangue, de ouvir palavras de baixo calão, de ter uma visão clara da violência, ou de qualquer outra coisa “forte“, é nos tirado então o direito de adquirir o conhecimento vivido de forma natural. Assim há um certo atraso mental na cabeça de Sara – vivida por Aniya Hodge (aos 3 anos), Sarah Abbott (aos 9) e por Brenna Harding (aos 15) -, a criança em que temos o sistema Arkangel injetado após ela desaparecer por algumas horas enquanto a mãe se distraiu conversando com uma amiga no parquinho. A decisão da mãe (Rosemarie DeWitt) foi pelo medo de perder a filha e pelo zelo de não perdê-la de vista novamente. A ideia, que estava sendo apenas testada, é completamente bizarra e o episódio expõe isso de um jeito bastante objetivo. No entanto, há uma clara intenção de mostrar o Arkangel com ambiguidade, dando a chance do espectador pensar no aquilo pode oferecer de bom para alguém, e em como ele vai contra a ordem natural da evolução do ser humano.
Arkangel ainda é uma história íntima de duas pessoas, mãe e a filha, mas também traz discussões sutis, como as expostas acima. É interessante, entretanto, que o episódio também expõe as consequências que o tal sistema pode trazer para a vida da criança, que em determinado momento tem um ataque de raiva e pratica a automutilação. Após isso o primeiro choque que o episódio apresenta é quando a mãe desliga o Arkangel e resolve deixar a filha viver uma vida normal. E é assim que Jodie Foster mostra um rápido comparativo entre um mundo com Arkangel e como este mesmo mundo fica sem o programa.
Apesar de acertar em tais questionamentos e em levantar essas discussões, o episódio carece de mais sustância. Os conceitos estão todos expostos aos olhos do público, que pode identificá-los com facilidade, mas a montagem do episódio parece estar tirando a chance do roteiro explorar ainda mais esses conceitos. Porém, o fato de todas as ideias estarem claras fazem com que Arkangel, a sua maneira, seja mais do que satisfatório, tanto como um drama pessoal, como uma história que tem algo muito relevante para oferecer.
Jodie Foster dirige muito bem o episódio, fazendo com que cada fase da vida de Sara sofra uma influência diferente com o uso do Arkangel. O colapso de tudo acontece durante a adolescência, e não é por acaso. Aos 15 anos, Sara inicia de vez a fase do descobrimento, é quando o chamado coming-of-age (uma espécie de transição para a vida adulta) começa a acontecer, com o surgimento da sexualidade e da vontade de ter uma vida própria sem a invasão dos pais – a dita privacidade. A gravidade de tudo isso culmina, novamente, na insegurança da mãe, que carrega consigo o trauma de ter perdido a filha uma vez, e na inconformidade de perdê-la de novo. Aqui o uso do Arkangel aparece como uma espécie de recaída de um dependente químico, onde a mãe parece reativar o vício de controlar e privar a vida da filha. É nesse momento também que o episódio apresenta as consequências mais graves para o uso do Arkangel e onde o fator humano da ordem natural das coisas fala mais alto.
Arkangel é mais um capítulo de Black Mirror que expõe, com uma ideia formidável, como a tecnologia afeta o ser humano e como o uso dela torna-se problemático em frente as vontades, medos e anseios de cada pessoa, tornando-se uma arma poderosa e sentimentalmente destrutível. Jodie Foster acerta em cheio na direção, e Charlie Brooker, criador da série que escreveu o roteiro de todos os episódios da temporada, mostra mais uma vez a sua obsessão por um mundo influenciado pela tecnologia, deixando claro que não só a criação é falha, mas também o criador.