O que é Black Mirror? Uma “ficcionalização” de um mundo “futurista” marcado pelos avanços tecnológicos? Dependendo do episódio, sim. Em suma, não. A série que alcançou o sucesso pelas suas primeiras temporadas e pela ideia de construir uma história, em parte, interativa, se trata de uma reflexão das relações sociais e de como elas são afetadas pela tecnologia.
A visão futurista, no entanto, é na verdade um retrato do futuro que imaginamos no presente – uma dose de surrealismo baseado em um pragmatismo que tenta prever os avanços do mundo tecnológico e digital. E Striking Vipers, primeiro episódio da nova temporada, reflete esse pensamento na sua temática.
Dentro disso, está ainda a base ideológica que norteia a reflexão principal do episódio: A Sociedade do Espetáculo de Guy Debord. A tese deduz que as relações sociais passam a ser intermediadas por imagens (em resumo). Mas aqui, em Striking Vipers, a série vai além e cria essas relações através de uma realidade virtual, ou seja, uma simulação do pseudoambiente de Walter Lippmann – que fala sobre um mundo criado dentro da nossa cabeça, diferente do mundo fora dela que temos como realidade concreta (um contraste entre subjetividade e objetividade).
Dito isso, Striking Vipers trás esses conceitos para contar uma história sensorial, que mexe emocionalmente com os seus personagens. Desde os primeiros minutos é nítido que para todo esse desenvolvimento o foco principal será a relação entre Danny (Anthony Mackie), Karl (Yahya Abdul-Mateen) e Theo (Nicole Beharie).
Além de trazer em seu cerne as relações sociais e em como a tecnologia as afeta, Striking Vipers se propõe a aprofundar três temas em específico: relacionamento, fidelidade e sexualidade. O espaço virtual dá as pessoas uma liberdade que elas normalmente não se permitem ter, ou que simplesmente não têm, nos espaços físicos que frequentam. Os fóruns com perfis não identificados, com nomes inventados em homenagens a personagens de filmes, livros, séries e jogos são um claro exemplo disso.
Sendo assim, o mundo criado pelo Striking Vipers X, que coloca o subconsciente dos jogadores dentro de um novo mundo (algo bastante semelhante com o filme de Steven Spielberg, Jogador Nº1) abre um novo mar de possibilidades. Inserir os jogadores dentro do jogo, a princípio, parecia algo restrito apenas para a jogabilidade, mas a atração de Danny e Karl mostra que há mais dentro daquele universo.
O fato comprova-se quando, após terem uma primeira separação, Karl cita participações em outros atos sexuais, monogâmicos ou grupais – além de apontar uma mescla de vício e obsessão. Ou seja, o jogo não foi uma tentação apenas para os dois, e sim para todos os usuários. Por tanto, o episódio coloca-se na posição de iniciar debates, e não de respondê-los.
Se relacionar sexualmente com outra pessoa, em forma virtual, é traição? Deixa de ser traição por não ser físico? E o compromisso nos relacionamentos monogâmicos deve se restringir apenas ao mundo fora de nossas cabeças? Os sentimentos devem ser corrompidos pela tentação/atração? Até onde os sentimentos permitem que as mentes se abram para novas ideias?
São questões como essas que constroem o primeiro episódio da quinta temporada de Black Mirror. É com isso que o episódio tenta fisgar o espectador. Estes questionamentos tentam ser o suficiente para satisfazer ou contentar o público.
Contudo, há sempre um “hype” exacerbado em cima de Black Mirror, como se a série fosse sempre apresentar algo de explodir a cabeça, algo revolucionário. Apesar de criar essa expectativa no seu público, Black Mirror se abstém de tal responsabilidade e compromete-se em apenas entregar ao público um prato de questões que devem ser debatidas.
Relacionamento monogâmico, relações virtuais, sexualidade e fidelidade, são questões atuais discutidas pela sociedade contemporânea. O mundo atual vive um momento de quebrar paradigmas, desconstruir padrões e de liberdade de pensamento. A população não se atém mais a pensamentos retrógrados e fechados, e as temáticas de Striking Vipers são um reflexo dessa realidade.
É com essas camadas que o primeiro episódio da nova temporada se sustenta. Striking Vipers não se faz tão envolve, mesmo sendo extremamente sensível e emocional. Suas questões não emocionam, de fato, mas dão subsídios suficientes para o espectador entender tudo que está em jogo e alcançar as suas reflexões.
Anthony Mackie, o Falcão do Universo Marvel, constrói um personagem recluso aos seus sentimentos, uma daquelas pessoas que guarda tudo dentro de si. Yahya Abdul-Mateen, o vilão Arraia Negra de Aquaman (2018), por outro lado, externa uma segurança inverídica sem esconder que lá dentro da sua cabeça existem questões completamente diferentes. Nicole Beharie, protagonista da série já cancelada Sleepy Hollow, vive um conflito compreensível: sente o marido perdendo o interesse e o desejo – algo bastante comum neste tipo de situação.
Black Mirror começa sua quinta temporada sem colocar o pé no acelerador. Striking Vipers é um episódio morno em ritmo e de desenvolvimento cadenciado, mas bastante conciso nos seus objetivos. Simples e despretensioso em sua hora e um minuto de duração, Striking Vipers não sacia o tempo de espera por uma temporada tão aguardada.
Suas reflexões, no entanto, são satisfatórias para quem entende o propósito de sua existência. Dito isso, é claro que fica aí a intenção de um reajuste de expectativas. Com os pés no chão e sem euforia, a digestão deste episódio em específico pode ser feita de forma mais agradável. Mas só isso também não garante que o mesmo torne-se mais do que realmente é.
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