Imagem do filme Criaturas do Senhor
Emily Watson como Aileen O'Hara em "Criaturas do Senhor". | Crédito: Cortesia da A24.

A morte de um jovem pescador abala a pequena cidade irlandesa cuja economia se resume em atividades marítimas. Mas enquanto alguns vivem a dor da perda, outros presenciam o retorno de Brian O’Hara, interpretado pelo indicado ao Oscar 2023 Paul Mescal. O filho de Aileen (Emily Watson) estava morando fora do país e volta para tentar colocar a vida de volta aos trilhos logo nos primeiros minutos de Criaturas do Senhor.

Brian é um rapaz jovem, sorridente e aparentemente carinhoso, mas o tom sombrio que paira sobre ele não esconde que há algo em sua vida que vai ao contrário da primeira impressão. Embora não explique, não foi de graça que Brian voltou para a Irlanda.

Aileen trabalha na empresa da família, supervisionando o trabalho de outras mulheres que limpam peixes, ostras e outros mariscos fruto das pescas. A vida dessas pessoas é monótona, vivem a rotina de trabalho e noites no bar com os amigos. Além disso, há os eventos religiosos frequentados por parte da população.

Embora o mar e o vento sejam barulhentos, as pessoas vão ao contrário disso. Há no silêncio de cada um algo escondido, ou ignorado pela maioria. Sarah Murphy, vivida pela irlandesa Aisling Franciosi, é uma dessas pessoas cujo silêncio faz muito barulho. Sarah vive em um relacionamento abusivo, onde a qualquer momento algo de ruim pode acontecer.

A relação com o silêncio e com a conivência é tanta que personagens conversam sobre a possibilidade disso acontecer, enquanto assistem isso e nada fazem. Mas o mote do longa-metragem da dupla Anna Rose Holmer e Saela Davis é a relação dessas pessoas justamente com estes abusos.

Imagem do filme Criaturas do Senhor
Paul Mescal como Brian O’Hara (esquerda) e Emily Watson como Aileen O’Hara (direita) em “Criaturas do Senhor”. | Crédito: Cortesia da A24.

A história leva os personagens a estados diferentes frente a esta situação. No caso, Sarah, depois de terminar o relacionamento tóxico, encontra-se com Brian e relembram os tempos de juventude onde tiveram um envolvimento. Depois disso, Brian abusa de Sarah, que após fugir da possibilidade de sofrer violência doméstica acaba se tornando vítima de violência sexual.

A partir disso, Criaturas do Senhor foge da espetacularização do estupro e procura refletir sobre o que as pessoas fazem diante dessa situação. Aileen, então, surge como protagonista a partir do momento em que recebe a informação de que o abusador de Sarah é Brian.

É com isso que gradualmente Aileen começa a assimilar que o filho, de quem ela tanto sentia saudades, havia abusado de uma pessoa próxima, alguém com quem o próprio Brian cresceu junto. Esse peso é magistralmente acrescido por Emily Watson em sua atuação. E a forma como a atriz sobrecarrega o emocional de sua personagem, de pouco em pouco, até chegar no limite de Aileen, é talvez o que há de mais impressionante no filme.

Para entregar tamanha atuação, há um trabalho muito envolvente da direção de Anna Rose Holmer e Saela Davis, além do trabalho sensível da direção de fotografia em comunhão com a trilha sonora e o próprio roteiro. Mescal também se destaca – logo ele que vem trilhando um caminho de sucesso após o destaque na minissérie Normal People e do premiado Aftersun que o levou a uma indicação ao Oscar.

Além da dupla de destaque, a intérprete de Sarah, Aisling Franciosi, também apresenta uma atuação densa. Depois de sofrer em silêncio e em isolamento, Sarah ainda é violentada pelo sistema judicial, pela comunidade e pelo chefe no trabalho, que a demite ao invés de acolhê-la.

Imagem do filme Criaturas do Senhor
Aisling Franciosi como Sarah Murphy em “Criaturas do Senhor”. | Crédito: Cortesia da A24.

A forma como o filme retrata isso, mas sobretudo como desenvolve o dilema da mãe – que se vê envolvida em uma trama de proteção ao filho e de assimilação do que ele fez – é fruto da visão que somente uma, mas neste caso duas, mulher poderia dar a uma história como essa.

Embora as atuações, em especial a de Emily Watson, sejam o grande destaque de Criaturas do Senhor, não há como deixar de fora a qualidade do longa-metragem em tudo aquilo que acompanha a sua narrativa.

Composto por uma história densa, personagens repletos de camadas e nuances dramáticas muito sutís envelopadas por uma estética visual e narrativa pouco convencional, Criaturas do Senhor é daqueles filmes que ficam com o espectador. Sua sensibilidade e o tato das diretoras com a história, tornam a experiência tocante e dura.

Conduzido pelos dilemas de Aileen, o filme fala sobre relações, mas foca principalmente no silêncio e na permissividade diante do absurdo. É sobre se calar, sobre prever e não impedir. A sua maneira, Criaturas do Senhor é potente como uma onda colidindo em uma rocha.

Avaliação
Ótimo
8.0
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Sou jornalista, fundador e editor da Matinê Cine&TV. Escrevo sobre cinema e séries desde 2014. No jornalismo tenho apreço pelo cultural e literário, além de estudar e trabalhar com podcasts. Além dos filmes e séries, também gosto de sociedade e direitos humanos.